Por Larissa Andrade

A restrição à circulação de caminhões em perímetros urbanos, como acontece em São Paulo e também em outras capitais brasileiras, parece ser uma tendência irreversível mundo afora. Grandes cidades, como Londres, Paris e Barcelona, entre muitas outras, já contam com leis que restringem o tráfego de caminhões e a carga e descarga em certos horários. Hamburgo, na Alemanha, por exemplo, foi além e divulgou neste início de ano um projeto que pretende banir os automóveis do centro da cidade até 2034.

Nem sempre o objetivo desses projetos é amenizar o trânsito,como acontece em SP, conforme explica a especialista Laetitia Dablanc, diretora de pesquisa do Instituto Francês de Ciência e Tecnologia para o Transporte, Desenvolvimento e Redes. “Na Europa, há três motivos para a restrição do acesso de caminhões às cidades grandes. Algumas proíbem durante a noite para evitar a poluição sonora, outras proíbem caminhões grandes durante o dia visando reduzir o congestionamento e promover entregas noturnas e, para terminar, um número crescente de cidades proíbe caminhões antigos de circularem por conta da qualidade do ar”, detalha.

7481t
O trânsito não é o único motivo da regulamentação da circulação de caminhões nas grandes cidades da Europa, explica Laetitia Dablanc

Um dos casos mais interessantes nesse tema acontece em Londres, onde a primeira lei de restrição de circulação de caminhões durante a noite começou a vigorar em 1978. Atualmente, os veículos com mais de 18 toneladas não podem circular na região delimitada das 21:00h às 7:00h de domingo a sexta-feira; e das 13:00h às 7:00h de sábado para domingo. Conhecida como LLCS (sigla em inglês para Esquema de Controle de Caminhões em Londres), se desrespeitada, a medida resulta em uma multa de 130 libras para o motorista e de 550 libras para a empresa de transporte.

As empresas que necessitam acessar as vias restringidas nos horários mencionados podem pedir uma autorização para circularem. Porém, mesmo quando a liberação é concedida, o motorista deve restringir a circulação somente aos trechos que forem efetivamente necessários, porque a permissão não é absoluta. “Para que a atuação dos transportadores não seja inviável, o LLCS identifica algumas rotas especiais abertas durante a noite que devem ser usadas pelos caminhões pesados”, explica Laetitia Dablanc.

7456t
Conforme o país e a cidade, as regras para a circulação de veículos de cargas nos centros urbanos têm diferentes horários e caraterísticas

Outra questão que preocupa autoridades londrinas e afeta o transporte de carga e a “Grande Londres” é a chamada Zona de Baixa Emissão (LEZ). Com o objetivo de reduzir a poluição, a medida inclui não apenas caminhões, mas também ônibus e automóveis. Mas foram os veículos de carga os primeiros a serem afetados pela LEZ, que começou a vigorar em 2008 na cidade. Atualmente, caminhões fabricados antes de outubro de 2006 – anteriores ao Euro IV – não podem circular na área.

As empresas costumam levar a lei a sério, pois o controle é praticamente infalível. “Em Londres, câmeras leitoras de matrículas que identificam o veículo estão por todos os lados, especialmente para reforçar a LEZ. Se o seu número de matrícula do veículo não estiver registrado na base de dados municipal, o caminhão é automaticamente multado quando cruzar o limite da zona LEZ”, acrescenta Laetitia.

7466t
Algumas transportadoras brasileiras já assumiram o custo das multas, porque é mais barato que o impacto operacional, diz Orlando Fontes Lima Junior

Em Paris, o setor de transporte de carga tem números que impressionam: semanalmente, são feitas 1,6 milhão de viagens, e entre 15% e 25% dos veículos que ocupam o espaço das ruas e avenidas da capital francesa são caminhões e o número varia de acordo com a área e os períodos do dia. A solução adotada pela prefeitura local para reduzir a poluição e o trânsito e dar mais dinamismo à economia, foi firmar, em 2006, uma “Ata de Boas Práticas” junto às associações de transportes, operadores, grandes empresas etc.

Uma das medidas que o documento incluí é a restrição de circulação e carga e descarga de caminhões. Veículos com até 29 metros quadrados podem circular das 7:00h até às 22:00h, enquanto aqueles com medidas entre 29 e 43 metros quadrados só podem trafegar entre 22:00h e 7:00h. Mas a prefeitura foi além, pois durante o horário em que o ar está mais poluído, das 17:00h às 22:00h, apenas caminhões “limpos” podem circular.

7458t
A utilização de veículos híbridos para a distribuição de cargas nos centros urbanos tem sido uma das soluções em grandes cidades da Europa

Enquanto algumas empresas adotam soluções “verdes” – que se tornam estratégia de marketing -, caso da Sephora, empresa de cosméticos, cujas entregas na capital francesa são todas feitas com caminhões elétricos, outras sofrem para se adaptar, pois o custo – tanto do ajuste aos novos horários quanto da renovação de frota – é muito alto e muitas vezes não pode ser repassado integralmente ao consumidor. Laetitia destaca que há poucos exemplos de subsídios oferecidos para que as empresas possam comprar caminhões mais limpos. “Para vans e caminhões elétricos, há subsídios em muitos países, mas eles fazem parte de um mercado ainda muito pequeno”, completa. Ainda em relação à entrega noturna, ela lembra que em Paris os caminhões pesados rodam à noite, o que é uma boa alternativa, mas o problema é que nem sempre as lojas e outros receptores estão dispostos a receberem as mercadorias durante a noite.

A Prefeitura de Paris tem buscado uma saída para o problema da questão do barulho indesejado provocado pelas entregas noturnas. Uma das ações da “Ata de Boas Práticas” diz respeito à certificação do serviço de entrega por baixa poluição sonora. Isso inclui, entre outras coisas, formação de agentes que realizam as entregas noturnas e modificação do local de entrega se necessário. Dez empresas já executaram o processo e quatro delas receberam a certificação”, ressalta a chefe da divisão de logística urbana de Paris, Sylvaine Benjamin.

7436t
Jaime Mira, do Instituto Catalão de Logística, comenta que as restrições ao tráfego na Espanha são um custo que o transportador tem de assumir

Na capital francesa, a verificação se os caminhões e os motoristas estão cumprindo a lei não é tão efetiva. “O controle da restrição de caminhões e vans é feito por agentes de polícia não especializados. Eles fazem um número muito limitado de controles, e é de conhecimento público que o reforço é muito pobre”, diz Laetitia. Situação similar à verificada em São Paulo, onde algumas empresas se readaptaram à restrição, mas com uma estratégia peculiar, conforme relata o presidente do Centro de Logística Urbana Brasileira (CLUB), Orlando Fontes Lima Júnior. “O controle dos caminhões é feito pela CET, que multa o veículo quando ele é flagrado circulando na Zona de Restrição no horário proibido. Mas algumas empresas já assumiram o custo da multa, ou seja, em alguns casos é mais barato pagar a multa do que o impacto operacional”, diz.

Uma das vantagens que as cidades brasileiras apresentam em relação às europeias está na idade. Na Europa é comum encontrar grandes cidades com bairros antigos em que o acesso de grandes caminhões é praticamente impossível; ou então o trânsito frequente de veículos pesados poderia danificar construções históricas, como é o caso de Barcelona.

7486t
Sephora atua na capital francesa com caminhões elétricos, um mercado de veículos ainda pequeno mesmo na Europa

O desafio da cidade foi criar uma medida que respeitasse todos esses aspectos, conforme explica o diretor de operações e mobilidade da Prefeitura, Enric Barquets. “Existem zonas de caráter mais iais ou residenciais e as diferentes características de cada uma dessas zonas nos obrigam a regulamentar um tratamento diferencial tanto na circulação de veículos pesados quanto na distribuição dos horários de circulação dos mesmos. A largura das vias, por exemplo, é um elemento determinante da geometria das ruas que pode obstaculizar a fluidez do tráfico quando são frequentadas por certo tipo de veículos pesados”, esclarece.

Desde 2003, a Prefeitura de Barcelona estabelece medidas que restringem a circulação no centro da cidade, as quais foram se adaptando às mudanças da frota e às necessidades. Barquets comenta que os veículos tendem a suportar mais peso com menor tamanho, isto é, o transporte se regula cada vez mais por volume em detrimento do peso. Além disso, a distribuição da atividade comercial vai se polarizando mais em mercados e shoppings, o que requer veículos de maior capacidade. “Os padrões de qualidade urbana mudaram e atualmente se prioriza a mobilidade sustentável de menor custo ambiental e os espaços se reordenam em função do modo de transporte. Por isso, a Prefeitura está trabalhando para adaptar a normativa às variações dos últimos anos”.

Ele explica que o cumprimento do decreto é feito pela Guarda Urbana e ressalta que, depois de alguns problemas ao princípio, atualmente a norma é conhecida e assimilada. “Este tipo de veículo já não concentra grandes incidências e, ainda assim, se há incidências elas acontecem principalmente em determinadas vias de grande circulação, devido ao aumento da tonelagem dos veículos interurbanos que estão de passagem e a progressiva demanda de trânsito de veículos deste tipo para abastecer o centro da cidade”.

Vinte anos depois da medida ter entrado em vigor, o diretor de operações e mobilidade da Prefeitura de Barcelona ressalta que as empresas de transporte já estão adaptadas às zonas de restrição, e que já estão começando a se planejar e renovar novamente as frotas para ajustá-las às dimensões atuais estabelecidas como padrão.

Mas entre os transportadores e especialistas em logística, o resultado não é tão unânime. O diretor da Fundación ICIL (Instituto Catalão de Logística), Jaime Mira, explica que, na Espanha, as decisões de restringir o tráfego de veículos pesados são muitas vezes unilaterais. “A princípio, essas mudanças podem ser feitas com tempo, mas (os governos ) não dão subvenções para você renovar sua frota. É um custo que o transportador tem de assumir. No final, quem paga o preço é a empresa de transporte e, com a crise, estão pagando cada vez menos pelo frete”. Todas as cidades que estão aderindo às mudanças encontram diversos desafios pelo caminho e têm de se adaptarem a eles. Embora conhecer outros casos seja interessante, Orlando Fontes Lima Júnior, do CLUB, ressalta que há muitas diferenças entre cidades e países que tornam inadequada a aplicação da regra adotada em um local para outro. No caso do Brasil, por exemplo, a idade da frota é muito maior e mesmo que nesse momento houvesse incentivo para a aquisição de caminhões elétricos, não há a infraestrutura necessária. “A visão top down (de cima para baixo) funciona na Europa, porque lá já tem uma série de coisas não existentes aqui. Nós não temos uma proposta semelhante de construção participativa”, diz.

O problema apontado por Júnior é o mesmo verificado na Espanha por Jaime Mira. “Sou crítico em relação a essas medidas, pois elas acontecem sem a discussão de todos os atores envolvidos. Fala-se muito nas entregas noturnas, que acontecem quando há proibição durante o dia. Se essa medida for pensada apenas sob a ótica do poder público é excelente, pois à noite as ruas estão vazias e com isso você melhora o trânsito durante o dia. Mas quando você coloca os outros atores, você começa a entender que o problema é muito complexo”, explica o presidente do CLUB.

Se há empresas que não encontram problemas em entregar ou receber a carga durante a noite, como é o caso de concessionárias – que contam com espaço e oferecem segurança -, há outras que sofrem com a decisão, como pequenas lojas sem estrutura 24 horas, quando a carga e descarga são feitas na calçada, o que também compromete a segurança e provoca ruídos.

Na Itália, um grupo de cidades metropolitanas que reúne Turim, Milão e Nápoles está liderando uma experiência piloto de mudar o comportamento de uma regulamentação restritiva, como acontece em São Paulo, para um sistema de acesso reconhecido, ou seja, um credenciamento, que se dá por meio da Parceria do Frete de Qualidade. “Nesse cenário, câmaras de comércio e o Ministério de Desenvolvimento Industrial criaram fundos para passar do uso de veículos poluentes para outros mais ‘verdes’ sem prejudicar a concorrência leal entre as empresas”, explica Massimo Marciani, presidente da FIT Consulting e um dos membros do Projeto Pumas.

A tendência de restringir a circulação de veículos é irreversível e o Brasil deve passar – nos próximos anos – da preocupação principal com o trânsito para o foco da sustentabilidade. Mas as experiências pelo mundo tem mostrado que as decisões devem levar em conta a opinião de todos os participantes deste mercado, incluindo o carreteiro, pois há muito em jogo, incluindo custos que impactam diretamente na saúde financeira das transportadoras – e ainda mais no bolso dos autônomos. É fundamental a conscientização de toda a sociedade sobre a importância do transporte de carga e dos problemas acarretados pela falta de regulamentação na circulação desses veículos.

Intercâmbio de ideias Sustentabilidade e qualidade de vida são algumas das preocupações crescentes mundo afora e alguns países decidiram se reunir para trocar experiências no que é conhecido como Projeto PUMAS (Planejando a Mobilidade Urbana Regional no Espaço Alpino, na sigla em inglês). Sete cidades estão desenvolvendo seus próprios projetos-pilotos entre 2012 e 2015 e um dos aspectos trabalhados é justamente a otimização do transporte de carga, pois ainda se nota o problema de esquemas de entrega com cargas muito fracionadas, o que afeta negativamente o trânsito.

Na região francesa de Lyon – uma das cidades participantes do Projeto PUMAS – embora não haja multas, existem certas restrições para a circulação de caminhões. “Nós preferimos que as empresas se envolvam desde o princípio, com a elaboração da regulamentação, pois assim elas tendem a respeitá-la. Nós trabalhamos também em um acordo entre  ransportadoras, varejos e autoridades públicas, o qual irá estabelecer os princípios de respeito mútuo”, explica Mélanie Betz, da Câmara de Comércio de Lyon.

Enquanto em Lyon o projeto está em fase intermediária, Mélanie menciona o que já acontece em outros centros urbanos da França e que vem se mostrando ser uma boa alternativa.Mélanie Betz conta que em algumas cidades desenvolveram o seguinte sistema de entrega de produtos: caminhões grandes levam os produtos até galpões e a distância final é feita por veículos de menor porte, menos poluentes. Em Paris, por exemplo, os quilômetros finais da entrega são feitos em barcos pelo rio Sena e em bicicletas