Por Evilazio de Oliveira

Depois de muitos anos ao volante, e de milhares de quilômetros percorridos, é inevitável que o carreteiro – já envelhecido e muitas vezes com a saúde abalada -precise avaliar a possibilidade de parar de dirigir. Não é decisão fácil, reconhecem, ainda mais que muitos, mesmo aposentados pela Previdência, continuem no trecho pela absoluta necessidade financeira. Alguns poucos trabalham pelo prazer ou por garantirem que não saberiam o que fazer se ficassem em casa, numa rotina à qual não estão acostumados e fatalmente resultaria em doenças. De qualquer modo, a decisão envolve emoções, orgulho, amor próprio, sentimento de liberdade e o gosto pela profissão.

Para o médico Moacir Passinari, é difícil dizer quando o motorista profissional deve, efetivamente, parar de trabalhar
Para o médico Moacir Passinari, é difícil dizer quando o motorista profissional deve, efetivamente, parar de trabalhar

No Brasil, a expectativa de vida da população é cada vez maior, e com isso também é maior o número de motoristas com idade elevada que continuam em atividade. A legislação exige que os exames de saúde para a renovação da Carteira de Habilitação ocorram em períodos cada vez mais curtos, todavia, esses exames não são os únicos parâmetros para determinar a capacidade de cada pessoa interagir com o veículo e o trânsito. Nos Estados Unidos, uma pesquisa sobre o assunto indicou a necessidade de avaliação individual de cada motorista. Mostrou pessoas com mais de 80 anos em plena forma física e mental e, ao mesmo tempo, um motorista jovem ou de meia idade pode estar enfrentando problemas de saúde ou tomando medicamentos – até mesmo remédios para resfriados – que perturbam seus reflexos, causam sonolência e o torna um perigo ao volante.

Os estudiosos afirmam que, enquanto a maioria dos motoristas jovens se envolve em acidentes por seu comportamento – ousadia, bebida, excesso de velocidade e desobediência consciente das regras de trânsito -, com os idosos, as causas, em geral, estão relacionadas à performance física. A idade afeta três aspectos fundamentais do ser humano: a visão, a rapidez do pensamento, a força e a mobilidade. Todos muito importantes ao dirigir.

Afastado da estrada por aposentadoria, Roberto Ferreira, considera difícil o carreteiro admitir que não tem mais condições de dirigir
Afastado da estrada por aposentadoria, Roberto Ferreira, considera difícil o carreteiro admitir que não tem mais condições de dirigir

Na avaliação do médico Moacir Passinari dos Santos, 63 anos de idade e 38 de profissão, é difícil dizer quando a pessoa, efetivamente, deve parar de guiar, pois tudo depende de uma série de fatores, a começar pela genética. Com a experiência de perito médico do INSS, e médico do trabalho, realiza o exame clínico prestando atenção, sobretudo, no comportamento e nos gestos do motorista para saber se ele “está de bem com a vida”. Isso é fundamental, garante o médico que, morando em Uruguaiana/RS – na fronteira com a Argentina e importante local de concentração de empresas transportadoras, caminhões e motoristas – conhece bem o assunto.

O médico ressalta que se o candidato estiver aposentado por incapacidade laborativa, certamente não poderá voltar a trabalhar. Nos demais casos, ele fará um exame minucioso da pessoa, analisando o histórico médico e familiar, além de prestar muita atenção no fator genético e no modo da pessoa se comportar no dia-a-dia, no humor, hábitos alimentares, peso, se fuma, bebe, se tem uma vida sedentária. Segundo o médico, 90% das pessoas de “bem com a vida” estão com a saúde boa, nos padrões de peso, freqüência cardíaca e demais sinais vitais dentro da normalidade. O contrário significa pessoas irritadiças, com lapsos de memória, inquietas e com idade biológica acima da idade cronológica. “Essas pessoas certamente podem se irritar facilmente ao volante e acabar fazendo bobagens, comprometendo a sua segurança e a de terceiros”, afirma. Concorda, entretanto, que o assunto é complexo e depende do comportamento e histórico de cada pessoa. Existem riscos inerentes à pessoa como o controle do estresse, hábitos de vida e, principalmente, de uma autocrítica constante, sabendo que muitas pessoas dependem do seu trabalho e, inclusive, do seu amor-próprio.

Francisco Lopes largou o volante por dois anos, mas não aguentou a vida de aposentado, voltou para a estrada e não pensa parar tão cedo
Francisco Lopes largou o volante por dois anos, mas não aguentou a vida de aposentado, voltou para a estrada e não pensa parar tão cedo

O presidente do Sindimercosul (Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários de Cargas Seca, Líquida, Inflamável, Explosiva e Refrigerada de Linhas internacionais do RS), Roberto Ferreira do Nascimento, o Kangurú, tem 61 anos e 40 de profissão e está afastado das estradas em razão da aposentadoria por motivos de saúde, e também devido ao cargo de dirigente sindical. Ele acredita que é muito difícil para o carreteiro admitir que não tem mais condições físicas ou emocionais para continuar dirigindo, mesmo que esteja aposentado. Salienta que muita gente trabalha sem carteira assinada, o que dificulta ainda mais a vida do profissional, de sempre precisar trabalhar mais para garantir o sustento da família. Parar de que jeito? Pergunta.

Aos 76 anos de idade e 56 de estrada, Francisco Lopes Martins Filho – natural de Mineiros do Tietê/SP e atualmente morando em Uruguaiana/RS – é um desses motoristas que não pensa em largar o volante tão cedo. Ele está aposentado e chegou a ficar parado por dois anos, mas não aguentou. “Aliás, ninguém me aguentava mais, sempre de mau humor, irritado, doente e com saudades de caminhão, de viajar, de trabalhar”, lembra. Voltou para o trecho. Ele conta que começou na profissão muito cedo, aos 15 anos em Bauru/SP, atuando como ajudante. Depois, já como motorista, trabalhou por 15 anos no transporte de combustíveis e hoje ele viaja entre Uruguaiana e São Paulo e Uruguaiana e Santiago do Chile. Mas já viajou por todos os países do Mercosul e até Bolívia. “Parar de trabalhar só quando morrer, ou quando não tiver mais condições físicas”, garante.

Com pensamento diferente dos colegas, Melchiades de Biasi diz que ninguém aguenta tanto tempo na estrada e vai se aposentar assim que for possível
Com pensamento diferente dos colegas, Melchiades de Biasi diz que ninguém aguenta tanto tempo na estrada e vai se aposentar assim que for possível

Francisco orgulha-se de não ter recebido multa de trânsito desde 1997 e, orgulhoso, mostra a CNH renovada em 2000 e com validade até este ano. A experiência com cargas perigosas tem sido útil na estrada, mesmo assim ele procura se manter atualizado e faz todos os cursos de aperfeiçoamento possíveis. Com relação à saúde, admite estar cerca de quatro quilos acima do ideal, mas já está cuidando da dieta para ficar no peso certo. Todos os anos faz um chek-up médico completo e se alimenta com moderação, com produtos saudáveis, frutas e muita água. Costuma carregar um kit de primeiros socorros na cabine e medicamentos para “dores de cabeça ou de barriga”, além de termômetro e medidor de pressão, que muitas vezes tem servido para ajudar algum colega na estrada. Divorciado, pai de quatro filhos e com 11 netos, ele garante que se sente muito bem viajando e com os colegas de profissão. “Eles gostam de mim, se preocupam e sempre querem saber se estou bem”, disse.

Lóris André Bertolini reconhece que é difícil manter o mesmo padrão de vida como motorista aposentado, por isso muitos continuam na estrada
Lóris André Bertolini reconhece que é difícil manter o mesmo padrão de vida como motorista aposentado, por isso muitos continuam na estrada

Ao contrário de Francisco, que não pensa em parar de dirigir, Melchiades de Biasi, 54 anos e 33 de profissão, natural de Garibaldi/RS, trabalha com um conjunto bitrem e afirma que vai se aposentar logo que possível e ver o que acontece. “Ninguém aguenta tanto tempo na estrada”, desaba. Confessa que ainda não fez planos para o futuro, vai pensar no assunto só quando chegar a hora. Com relação à saúde, afirma que está tudo bem e espera viver até os 100 anos, mas “longe das estradas”. Melchiades viaja pelo território nacional e, eventualmente, Paraguai.

Lóris André Bortolini, 41 anos e 20 de profissão, também é natural de Garibaldi/RS. É dono da Bortosul – Transportes Ltda., uma empresa que conta com 10 caminhões, seis dos quais são bitrens, que operam no transporte de rações e produtos de frigoríficos. Sempre que necessário, ele está no trecho junto de seus motoristas. Para Lóris o carreteiro deveria “pendurar as chaves” logo após se aposentar, mas reconhece que isso é difícil, sobretudo pela questão financeira. “Ninguém pode manter o mesmo padrão de vida com o que recebe como aposentado, por isso existe a necessidade de continuar trabalhando. Muitas vezes é preciso procurar alternativas fora da profissão, o que pode ser um grande problema”, diz. Apesar de admitir que viajar é uma coisa boa, ele acredita que a maioria dos carreteiros gostaria de parar, pois a estrada se constitui num grande estresse.

Por gostar muito da profissão, Pedrolino Magalhães diz que enquanto tiver forças continuará trabalhando com caminhão
Por gostar muito da profissão, Pedrolino Magalhães diz que enquanto tiver forças continuará trabalhando com caminhão

Faltando pouco mais de um ano para se aposentar, Pedrolino Martins de Magalhães, o Juvenal, 53 anos e 28 de profissão, garante que “enquanto tiver forças vai continuar trabalhando com caminhão”. Natural de Passo Fundo/RS, dirige uma carreta da Bertol S.A. Indústria, Comércio e Exportação, transportando grãos nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Ressalta que gosta da profissão, tem boa saúde e, claro, precisa de dinheiro para cumprir suas obrigações com a família e pagar as contas.

Na realidade, o momento de “pendurar as chaves” tem um grande significado na vida do carreteiro pelos envolvimentos financeiros e emocionais. Ainda mais numa sociedade que apesar da crescente expectativa de vida da população, valoriza cada vez mais a juventude. E, com isso, um relativo preconceito das empresas em admitir motoristas com idade acima dos 40 anos. Para continuar trabalhando, além dos impedimentos legais e de saúde, o carreteiro também vai precisar conquistar uma vaga no mercado, concorrendo com motoristas mais jovens e muitas vezes mais atualizados em termos de novas tecnologias para o setor de transportes. Uma tarefa nada fácil.