Por Evilazio de Oliveira

Os longos períodos ao volante e a necessidade cada vez maior de aumentar o número de viagens durante o mês poderiam ser explicados pelos baixos valores pagos aos fretes transportados pelos carreteiros, obrigando-os a fazerem cada vez mais viagens para manter o mesmo nível de ganho ao final do mês. Paralelo a esse fato, também estaria o crescente endividamento da categoria, justamente pelo fato de – pelo menos em teoria – estarem ganhando menos, e também à prática constante do recebimento de cheques pré-datados que demoram a ser cobrados e na maioria das vezes são condicionados ao abastecimento dos caminhões em determinados postos de combustíveis. Além disso, os longos períodos fora de casa fariam com que houvesse certo descontrole no pagamento de contas domésticas e demais obrigações financeiras da família.

Quando a pessoa cai no SPC ou no Serasa, e fica com o nome bloqueado nas gerenciadoras de risco, vira uma roda viva e o motorista se desestabiliza, lembra Paulo Dutra
Quando a pessoa cai no SPC ou no Serasa, e fica com o nome bloqueado nas gerenciadoras de risco, vira uma roda viva e o motorista se desestabiliza, lembra Paulo Dutra

Na opinião do presidente do Sindicam (Sindicato dos Transportadores Autônomos de Bens Nacionais e Internacional de Uruguaiana) Paulo Dutra, pelo menos 85% dos autônomos brasileiros estão endividados, por causa da concorrência desleal das grandes empresas. Segundo ele, com a globalização, o mercado de transporte se abriu, inclusive para a concessão de permisos para o transporte internacional e muitas empresas pequenas foram criadas, mas sem o devido suporte acabaram falindo e dando calote nos autônomos. Outras vezes, pequenas empresas eram formadas por pessoas de má índole apenas para tumultuar o mercado. De acordo com Dutra, fechavam e abriam da mesma forma deixando um monte de dívidas. “Quando a pessoa cai no SPC e Serasa, tem o nome bloqueado nas gerenciadoras de risco… é uma roda viva e o motorista se desestabiliza por completo”, comenta.

Vera Regina Schimitt trabalha com crédito bancário e sugere que as esposas tenham um rigoroso controle das despesas e dos pagamentos das contas da família
Vera Regina Schimitt trabalha com crédito bancário e sugere que as esposas tenham um rigoroso controle das despesas e dos pagamentos das contas da família

Para evitar essa completa desestabilização financeira do carreteiro é que a analista de crédito de uma importante rede de supermercados que atua na Fronteira Oeste no Rio Grande do Sul, Vera Regina de Souza Schimitt, 58 anos e 38 de experiência na área de crédito bancário, sugere que as esposas tenham um rigoroso controle das despesas e dos pagamentos das contas. Lembra que os motoristas passam longos períodos fora de casa, cabe à mulher a administração de todas as despesas com alimentação, escola das crianças, vestuário, saúde, além da administração dos valores que ficaram em casa para garantir essas despesas. Muitas vezes essas mulheres, diz, por um motivo ou outro, até mesmo alheio às suas vontades, gastam mais do que podem, estourando o orçamento. Vera Schimitt salienta, também, que muitos motoristas recebem cheques pré-datados ou mesmo em atraso. Ao final, suas contas também já vencidas e com juros vão dificultando cada vez mais o equilíbrio financeiro da família. E não é uma situação só dos carreteiros, adverte a analista. Para reforçar essa opinião, Sirlei Reginaldo de Oliveira, 53 anos, mulher do carreteiro Nery Ricardo de Oliveira, 51 anos e 33 de profissão – garante que é muito controlada nas despesas “pois sabe como as coisas funcionam”.

Sirlei de Oliveira e Nery Ricardo de Oliveira decidem juntos qualquer tipo de compra, mas antes analisam a real necessidade, para evitarem eventuais apertos no final do mês
Sirlei de Oliveira e Nery Ricardo de Oliveira decidem juntos qualquer tipo de compra, mas antes analisam a real necessidade, para evitarem eventuais apertos no final do mês

O casal, natural de Gravataí/RS, viaja num caminhão trucado ano 80, na rota Uruguai, Argentina e Chile. O veículo está pago e as duas filhas, já “encaminhadas”, situação que permite que o casal fique mais tempo junto. Uma das filhas faz mestrado em biologia, em Montevidéu, graças a uma bolsa de estudos, enquanto a outra cursa administração de empresas, com o auxílio dos pais. Com isso, e um pouco mais de folga nos compromissos financeiros, Nery e Sirlei vão juntos para o trecho. Ele tem opinião de que atualmente é preciso trabalhar mais, rodar por mais tempo e controlar cada vez mais o dinheiro, porque tudo é muito caro, a manutenção do caminhão, combustíveis e pedágios, enquanto o valor do frete permanece estagnado.

Com os filhos criados e independentes, o casal Leandro Ribeiro e Anise Postal controla bem as despesas e não acredita que haja vantagens financeiras em rodar por mais tempo
Com os filhos criados e independentes, o casal Leandro Ribeiro e Anise Postal controla bem as despesas e não acredita que haja vantagens financeiras em rodar por mais tempo

Casados há 30 anos, estão acostumados a decidirem juntos qualquer tipo de compra ou conta que precise ser feita. “É preciso estar sempre prevenido para qualquer emergência em casa ou mesmo com o caminhão”, afirma Sirlei. Ela diz que muitas vezes fica com vontade de comprar alguma coisa nova para a casa, ou mesmo uma roupa, mas antes analisa a real necessidade para evitar eventuais apertos no final do mês. Segundo Nery, apesar de todas as dificuldades na profissão, trabalhando direito dá pra viver bem. “E isso se aplica pra qualquer atividade”, arremata.

Após acidente que destruiu o cavalo-mecânico, Elias Roberto Urquiza teve de vender o semirreboque para trabalhar como empregado e garante que não faz bobagens na estrada
Após acidente que destruiu o cavalo-mecânico, Elias Roberto Urquiza teve de vender o semirreboque para trabalhar como empregado e garante que não faz bobagens na estrada

Outro casal que já está com os filhos criados e independentes – e que hoje cuida da própria vida, enfrentando juntos as eventuais dificuldades da estrada – é o carreteiro Leandro Borges Ribeiro, conhecido como Sagui, 62 anos e 44 de volante, e sua esposa Anise Postal Ribeiro, 56 anos. Natural de Vacaria/RS, casado há 38 anos e dono de um Fiat 80 com semirreboque, ele viaja no transporte internacional e garante que gosta de tocar direto e de viajar à noite, mais por costume do que por necessidade. Salienta que muitas vezes dirige por mais tempo apenas pela pressa de chegar em casa. Reconhece, no entanto, que muitas vezes não adianta andar depressa porque acaba ficando retido nas aduanas ou nas filas para carregar ou descarregar a carga. Também não acredita muito na história de motoristas que precisam rodar mais porque estariam endividados e precisando “faturar” mais no final do mês.

Todo mundo tem contas para pagar, e permanecer por mais tempo ao volante não resolve, porque no final todos ficam na fila para descarregar, opina Édipo Patan
Todo mundo tem contas para pagar, e permanecer por mais tempo ao volante não resolve, porque no final todos ficam na fila para descarregar, opina Édipo Patan

Anise administra a casa e as finanças e admite que é uma tarefa difícil, ainda mais quando é preciso cuidar da educação dos filhos, problemas de doença, de farmácia, mercado, mas sempre procurou agir da melhor maneira possível e com coerência. Hoje, apesar de estarem sozinhos, ela garante que cuida da casa e do dinheiro com o mesmo cuidado de sempre e com as mesmas preocupações, evitando criar problemas para o marido na estrada ou quando ele chega de viagem. “Ele precisa descansar e não ficar pensando em contas ou dívidas a pagar”, afirma.

É importante evitar dívidas difíceis de serem pagas, pois as dificuldades financeiras refletem no trabalho e resultam em imprudências na estrada, diz Nereu Dagostin
É importante evitar dívidas difíceis de serem pagas, pois as dificuldades financeiras refletem no trabalho e resultam em imprudências na estrada, diz Nereu Dagostin

O carreteiro Elias Roberto Urquiza, 48 anos e 30 de profissão, natural de Uruguaiana/RS, trabalha no transporte internacional com um caminhão ano 89. Conta que era dono de modelo 74 e sofreu um acidente, restando a ele como solução a venda do semirreboque. Sem condições de consertar o cavalo-mecânico, foi trabalhar como empregado. “A coisa ficou feia e até minha esposa precisa trabalhar para ajudar nas despesas e a pagar as contas, mas estamos nos recuperando aos poucos”, diz.

Mesmo assim, garante que tem procurado trabalhar dentro da normalidade, sem fazer bobagens na estrada, parando para descansar sempre que necessário e dormindo o suficiente para dirigir com segurança. Tem confiança que com o seu trabalho e a ajuda da mulher logo vai normalizar a vida, pagar as contas e – quem sabe – voltar a dirigir o seu próprio caminhão.

Trabalhando com calma e obedecendo as regras de trânsito e civilidade, Sidnei Joceli Teixeira conseguiu comprar mais de um caminhão e diz que os filhos seguem seu exemplo
Trabalhando com calma e obedecendo as regras de trânsito e civilidade, Sidnei Joceli Teixeira conseguiu comprar mais de um caminhão e diz que os filhos seguem seu exemplo

Na opinião do jovem carreteiro Édipo Patan, 22 anos e três de volante, quem está endividado e quer dirigir por mais tempo – às vezes até usado rebites – se engana, porque no final não fará mais do que se trabalhar de maneira normal e de “cara limpa”. Ele dirige um caminhão ano 99 do seu pai e trabalha no transporte internacional. Reconhece que contas para pagar todo mundo, o importante é agir direito e com prudência. “É preciso trabalhar dentro dos seus limites, porque no final da viagem é a mesma coisa: os motoristas se encontram nas filas das aduanas ou nas empresas esperando para descarregar”, diz.

Nereu Dagostin, 57 anos e desde os 19 no volante, é dono de um caminhão ano 95. Natural de Criciúma/SC, ele garante que viaja tranquilo e sem pressa, transportando azulejos e matéria-prima para produtos de cerâmica entre sua cidade e Uruguaiana/RS. Em casa, só ele e a mulher, pois os filhos são adultos e independentes. E como tem carga certa nos dois sentidos, trabalha sem pressa e com a certeza de administrar bem a sua vida com o que ganha, sem correr riscos ou fazer bobagens na estrada.

Acredita que no transporte rodoviário assim como em outras atividades, muitas pessoas passam por dificuldades financeiras que acabam se refletindo no trabalho, resultando em imprudência e evidentemente em acidentes graves. Acha que é preciso bom senso e responsabilidade, primeiro para evitar as dívidas difíceis de pagar e depois em achar um jeito de pagá-las. “Afinal, se o nome do carreteiro vai parar no SPC ou Serasa é difícil se equilibrar, porque as cargas não podem ser liberadas pelas seguradoras”, lembra. “E daí sim, o bicho pega”, conclui.

A profissão de motorista de caminhão é marcada pelo estigma de mulherengos, beberrões, violentos e maus pagadores de contas. É uma fama que persegue os carreteiros ao longo dos anos e difícil de ser revertida, segundo opinião de carreteiros experientes. E justamente por problemas com mulheres em casa, ou “avulsas”, pagamento de pensões alimentícias, além de outros “imprevistos” é que a vida do carreteiro se descontrola. Todavia, a maioria dos motoristas parece disposta a “mudar de vida”, deixando para trás os maus exemplos de alguns colegas.

Sidnei Joceli Teixeira, natural de Santo Ângelo/RS, 37 anos e 19 de estrada, pensa que o essencial é trabalhar direito e cumprir com as obrigações. Dono de caminhão ano 98, ele viaja do Brasil para a Argentina e Chile. Casado e com família para sustentar, comprou e pagou o seu primeiro caminhão.

Orgulhoso, conta que está no quarto caminhão, o qual comprou financiado e já está totalmente pago, embora tenha dado uma entrada de mais de 50% ou seja: deu o caminhão antigo no negócio. Sempre trabalhando com calma, obedecendo as regras de trânsito e de civilidade, e agindo direito com as transportadoras, nunca teve problemas. Pagou todas as prestações dos financiamentos, manteve a família com relativo conforto e nunca fez contas que não pudesse honrar.

A mulher e os filhos seguem o mesmo exemplo de Sidnei, que, por sua vez, também trouxe da casa dos pais. Reconhece que tem muita gente que trabalha igual a ele nas estradas, mas está endividada. “Não sei o que eles fazem com o dinheiro”, sorri.