Por Daniela Giopato  Fotos Fernando Favoretto

Motorista de caminhão é assim, quase sempre está na estrada, chega a ficar até um mês longe de casa vivendo uma rotina estressante, com horários de entrega de carga pré-estabelecidos pelas empresas e sem tempo de parada para se alimentar corretamente, descansar, curtir a família, amigos e até mesmo cuidar da saúde. Esse ritmo acelerado somado a hábitos pouco saudáveis, como dormir pouco, e falta de atividade física, tornam esse profissional alvo fácil de doenças como a obesidade, pressão alta, dor nas costas, depressão, infarto, entre outros males.

Dados divulgados pelo programa Estrada para a Saúde – realizado pelas concessionárias de rodovias CCR Autoban, CCR NovaDutra e CCR RodoNorte – mostram um quadro preocupante em relação à rotina e hábitos dos motoristas de caminhão. Levantamento feito em 2009, com cerca de oito mil motoristas atendidos pela Autoban, mostrou que 84% estão com peso acima do ideal; 77% são sedentários e 23% fumantes. Além disso, 36% apresentaram problemas de visão e 25% de hipertensão, outros 27% com glicose alterada e 18% com colesterol acima do ideal.

O carreteiro não consegue cuidar da saúde e deixa tudo para fazer nas férias, quando os problemas já se agravaram, diz Júlio César da Rosa
O carreteiro não consegue cuidar da saúde e deixa tudo para fazer nas férias, quando os problemas já se agravaram, diz Júlio César da Rosa

O mesmo resultado se repete nos atendimentos realizados pela NovaDutra, que apontou como principais problemas a obesidade, em 80% dos casos, além de pressão alta e dores nas costas em 48% dos motoristas. A concessionária RodoNorte atendeu em 2009 cerca de 1.700 carreteiros e desse total 60% apresentaram algum problema de saúde e o pior é que muitos deles desconheciam que sofriam da enfermidade. Isso acontecia devido a falta de hábito de realizar exames preventivos.

Em meados de 2009, Rinécio Castelam mudou de emprego e passou a fazer viagens mais curtas e programar melhor sua vida ao lado da família
Em meados de 2009, Rinécio Castelam mudou de emprego e passou a fazer viagens mais curtas e programar melhor sua vida ao lado da família

De acordo com a fisiologista do exercício, cinesiologista e nutróloga, Cláudia Cezar, o único caminho para modificar esse quadro é proceder uma mudança de hábitos, a começar pela adoção de alimentação adequada, que é sempre uma questão de escolha. Do mesmo modo que o caminhão precisa de um diesel de boa qualidade para manter um bom desempenho, o corpo precisa de nutrientes – e também de algumas horas de descanso – para manter as suas funções funcionando perfeitamente. Pelo menos no momento das principais refeições, o carreteiro tem de parar e comer com tranquilidade, renovar as energias físicas e psíquicas e somente depois voltar ao trabalho. “Se o motorista não rever seus hábitos e não pensar em si continuará a fazer parte da estatística de profissionais com grandes chances de desenvolver obesidade, hipertensão, colesterol, dores nas costas e até o câncer”, alerta.

Como outros carreteiros, Esdra Carnedo enfrentou problemas de saúde devido a rotina pesada da profissão e hoje faz exames médicos periódicos
Como outros carreteiros, Esdra Carnedo enfrentou problemas de saúde devido a rotina pesada da profissão e hoje faz exames médicos periódicos

Porém, o que seria certo não é o que acontece no dia-a-dia dos motoristas de caminhão, que apesar de conscientes de todos os problemas que esses hábitos podem ocasionar, optam por refeições rápidas, reduzem o tempo de parada e passam horas no volante para cumprir os prazos, carregar mais ou até voltar cedo para casa, quando possível.

“Infelizmente vida de carreteiro é assim. Gostaria de estar em casa todo dia, dormir na minha cama, jantar com tranquilidade e assistir televisão, mas não dá. Como dizem por aí, a estrada é a nossa casa”, desabafa o gaúcho de Carazinho, Gilberto Loes, 30 anos de idade e dois de profissão. Para driblar a saudade de permanecer dias longe de casa, e até de conseguir se alimentar melhor, vive constantemente acompanhado pela esposa e filho Vinicius, de apenas dois anos de idade. Com criança, explica, é necessário organizar melhor o tempo e respeitar os horários, além de não poder comer qualquer coisa. Nas horas vagas, Loes aproveita para se exercitar e jogar futebol com o filho. Quando não está em companhia da família, a opção se resume a lanches rápidos, geralmente dentro do próprio caminhão.

Cledir Teixeira já trabalhou em Portugal e lembra que lá os horários eram mais flexíveis e pensa que no Brasil carreteiro é como uma máquina programada
Cledir Teixeira já trabalhou em Portugal e lembra que lá os horários eram mais flexíveis e pensa que no Brasil carreteiro é como uma máquina programada

O carreteiro comenta que muitas pessoas acham que a vida do motorista de caminhão é simples, mas desconhecem que os problemas vão além de não conseguir se alimentar direito. “É de ‘cortar o coração’ ligar para minha casa e ter de escutar meu filho chorando e me chamando. Nesses momentos dá vontade de largar tudo”, lembra. “Talvez por isso seja revoltante que uma profissão tão importante para o País ainda seja desvalorizada”, complementa. Julio César da Rosa, 41 anos de idade e 21 de profissão, de Gravataí/RS, faz a rota internacional Brasil, Argentina e Chile. Ele chega a ficar 52 dias fora de casa e essa rotina resulta em uma alimentação pouco balanceada. As cargas com horário marcado pedem refeições simples e rápidas, como lanches ou o trivial – arroz, feijão e bife. Só come legumes e verduras quando para em um posto para esperar carga. “Aí dá para cozinhar e fazer um prato mais nutritivo”, diz. Outro agravante, citado por César da Rosa, é a falta de lugares seguros e com estrutura para descansar, nas rodovias, o que faz com que o tempo de parada seja curto para evitar transtornos.

Há 20 anos na estrada Dário Schneider acredita que o gosto pelo que faz é a única justificativa para alguém optar pela profissão de carreteiro
Há 20 anos na estrada Dário Schneider acredita que o gosto pelo que faz é a única justificativa para alguém optar pela profissão de carreteiro

“Motorista não consegue se programar para nada, nem para visitar o médico ou fazer um simples tratamento dentário. Fica tudo para as férias, mas até lá os problemas já se agravaram”, reconhece. Casado e pai de três filhos, ele admite que para quem fica em casa o sofrimento é maior do que o de quem está na estrada. Justifica dizendo que na correria do dia-a-dia sobra pouco tempo para sentir saudades. “Não sei o que é lazer, curto muito pouco a vida. Nos dias que fico em casa aproveito para resolver problemas que ficaram pendentes na minha ausência”, afirma. Para ele, descanso mesmo é apenas durante os 30 dias de férias.

O estresse vivido nos últimos 28 anos de profissão, sem tempo para dormir, se alimentar de forma correta e relaxar renderam a Rinécio Castelam, de Getúlio Vargas/RS, problemas de saúde, dentre eles pressão alta, depressão e até síndrome do pânico – hoje controlada. Durante seis meses, ele se afastou das estradas, por medo de viajar. Sentia falta de ar e palpitação no coração e, a pedido do filho, procurou um especialista e se tratou. Chegou a tomar remédio tarja preta para conseguir dormir e atualmente usa apenas medicamento para controlar a pressão. “O nosso corpo é uma máquina, que precisa de manutenção. Ninguém consegue ir longe dentro de uma rotina sem férias, sem tempo para comer, para se exercitar e principalmente para relaxar ao lado daqueles que ama”, filosofa.

Há seis meses, Rinécio se transferiu para uma empresa que tem férias coletivas no período das festas de final de ano e ainda consegue tirar mais 30 dias. Outro benefício são as viagens mais curtas, diferente do emprego anterior no qual passava apenas dois dias em casa. Atualmente ele viaja quatro dias e descansa quatro. “É outra vida. Hoje consigo programar minhas coisas e ficar mais próximo da família, mas para chegar aqui perdi muitos momentos importantes, sacrifiquei algumas pessoas, principalmente minha esposa, que sempre fez papel de pai e mãe”.

Outro motorista que também teve a saúde comprometida por conta da rotina pesada da profissão é Esdra Carnedo da Silva, de Curitiba/PR. Durante esses 14 anos de estrada teve problemas de estomago e princípio de infarto. Hoje toma medicamentos diariamente para pressão alta e coração. Após o susto que passou, adotou a rotina de fazer exames periódicos. E mais, abandonou a ‘cervejinha’ e procura se alimentar de maneira correta. Mas, confessa ser difícil cumprir todas as tarefas justamente pela falta de tempo, um pouco de descaso, e por estar em lugares diferentes a cada dia. “É difícil manter uma vida regrada, afinal, cada região que visito tem cultura e culinária diferentes. Não é como a vida de outras pessoas, que todos os dias almoçam no mesmo lugar e horário, e à noite estão em casa ao lado da família curtindo momentos de lazer”, compara.

Vida de carreteiro é só trabalho, passa entre 15 e 20 dias na estrada e um ou dois em casa, relata Esdra, que antes de escolher a profissão trabalhou como técnico de refrigeração industrial. O crescimento dos filhos, os problemas do dia-a-dia na maioria das vezes ficam a encargo da esposa e são monitorados pelo celular. “Às vezes me sinto impotente em relação algumas situações, principalmente quando envolve um filho que necessita da presença do pai. É como se fosse um parente que às vezes aparece e, de vez em quando, consegue ajudar”, explica. Esdra transporta produtos químicos e por questão de segurança não é permitido ao motorista levar a família.

Para Cledir Teixeira, de Santana do Livramento/RS, as principais dificuldades de quem escolhe a profissão são enfrentar a distância de casa e não ter tempo para cuidar da saúde. As refeições são sempre rápidas, geralmente sem qualidade – já que é complicado levar legumes, verduras e frutas no caminhão – e não há como se programar para visitar regularmente o médico e fazer exames preventivos de saúde. “O último check-up que fiz foi há dois anos, fora a dor nas costas o resto estava tudo bem”, conta. Em sua opinião, o fato de se preocupar em manter uma alimentação equilibrada e de se exercitar sempre o ajudaram a ter uma boa saúde.

Cledir já trabalhou em Portugal, com horários mais flexíveis, porque era motorista interno ficava mais perto da família e podia acompanhar melhor o crescimento dos filhos. Também tinha possibilidade de fazer as principais refeições como café-da-manhã, almoço e jantar sempre no horário. “Aqui no Brasil, as empresas não respeitam o carreteiro. É como se fossemos máquinas operando caminhões e programadas para entregar a carga no dia e hora estipulados”, define.

Gostar do que faz é a única justificativa encontrada por Dário Schneider, que acumula 20 anos de estrada, para alguém optar pela profissão e enfrentar todas as dificuldades. “Não é fácil passar parte da vida sozinho e longe da família. É complicado não ter tempo para se alimentar bem, curtir a vida e principalmente cuidar da saúde. Às vezes parece que não temos o direito de viajar a lazer, de dormir em casa, de assistir televisão e até mesmo marcar uma consulta médica”, desabafa. Schneider brinca que o único momento em que faz algum exercício para não enferrujar é na hora de carregar e descarregar o caminhão.

LOMBALGIA:

Uma das principais consequências para o profissional que passa horas ao volante, e pouco se exercita, é a lombalgia, popularmente conhecida como dor nas costas. Os principais fatores da causa, conforme explica o fisioterapeuta, João Augusto Figueiró, presidente do Instituto Zero a Seis, são erro de postura, bancos não ergonômicos, falta de apoio para o pescoço e braço, longas horas de trabalho contínuo, sedentarismo, obesidade, falta de alongamentos, poucas horas de sono, uso de medicamentos estimulantes e estresse. Como prevenção, Figueiró aconselha aos motorista a evitarem longos períodos de trabalho contínuo, redução nas horas de sono e doenças crônicas como o diabetes, fazer exercícios de alongamento e aeróbicos (mas antes tendo aprendido a realizá-los) e exames periódicos, entre outros. Se não for tratada, pode ocorrer a cronificação da dor, negligência com doenças que podem se manifestar como dor nas costas (como uma metástase de um câncer), prejuízo na capacidade ocupacional, incapacidades crônicas para o trabalho etc. (DG)